ape

o desarranjo poético

sábado, 30 de outubro de 2010

um babaca incorrigível

No meu caderninho de pensamentos desenho impaciente qualquer coisa.  Já é meu quarto expresso e tenho de continuar pedindo pois conheço o lugar, a balconista é uma vaca.  Queria poder acender um cigarro aqui, sinto minhas mãos geladas, talvez seja o mármore da mesa ou o frio que faz lá fora, o que na realidade não importa, meu cigarro não vai ser acendido.  Escuto uma risada vindo por de trás de mim.  No que me viro reconheço a dona da risada, velha conhecida, e ela ri ainda mais devido a minha cara de surpresa e minha costumeira falta de jeito.  Convido-a para sentar e ela delicadamente senta-se a meu lado.  Aquela trágica conversa de amigos que não se veem faz algum tempo começa.  Bem de saúde?  E a família?   Separou-se?  Uma pena.  Tento jogar algumas lembranças de nossa adolescência: os psicotrópicos, os casais, os shows, os sonhos... mas em nosso passado não ouso tocar, seria rude e eu não saberia como agir.  Se casei?  Não.  Crianças?  Só meus alunos.  Continua fumando pelo jeito?  Certos hábitos permanecem, querida.  Vejo que café é ainda o seu preferido.  Você é uma ótima observadora.
Falamos um pouco de política, flertamos um pouco os avanços da ciências e damos uma rápida passada pela história.  Ela desata a falar de um livro que estava lendo, um do naipe de Machado de Assis se entendi bem, não consegui acompanhar, pra falar a verdade não conseguia parar de prestar atenção nos beijos que os cílios dela davam com o vapor fumegante de seu capuccino que recém chegara.  "Querida, você pelo jeito continua com o hábito de ser linda", penso.  Quando dou por mim lá estava ela repetindo meu nome, com um semblante um tanto quanto preocupado.  Peço perdão pela ausência momentânea e tento por a culpa no excesso de stress.  Pergunte de novo.  Um livro?  Já escrevo o título pra você.
O assunto acabou agora, cada um se concentra em seu respectivo café quente.  Puxo do bolso de minha jaqueta uma caneta e no guardanapo escrevo.  Cuidadosamente o dobro junto de uma nota de cinco reais e deixo ao lado sua xícara.  Uma cara de espanto toma conta da calma que normalmente habita aquele rosto.  Beijo sua testa e chamo a vaca da balconista.  Desço as escadas suando feito um moleque que mostra a nota ruim ao pai.  Finalmente, na rua posso acender meu Lucky.  Me ponho a imaginar ela lendo minha cursiva mal feita e notando que aquilo é tudo menos o título de um livro.  Espero sinceramente que lembre das músicas que tocavam no nosso tempo e que não me ache um babaca por ter escrito aquelas bobagens sentimentais.  Da janela do andar de cima ela sorri para mim.

Só nós dois sabemos que esse sorriso é o máximo que posso roubar de você, sempre foi assim.

E terminamos com acenos falsos nosso dia, tão falsos quanto as mentiras que são nossas vidas.

A próposito, nao me julgue por ter apenas dado cinco reais, um babaca que se prese nunca pode terminar um encontro como cavalheiro.

3 comentários:

  1. bukowski/veríssimo total, haha. me pergunto o quanto é autobiografico nisso aí.

    ResponderExcluir
  2. gostei. principalmente dos diálogos "infiltrados" no texto.

    ResponderExcluir
  3. Mais bukowski, eu diria. Lindo, lindo, lindo. A gente percebe que uma história literária é boa, quando conseguimos nos imaginar nela, ou em alguma situação parecida. Eu, pelo menos, imaginei-me ali, só que no lugar do homem, em totalidade.

    ps: o detalhe da balconista vaca, agradou-me demais.

    ResponderExcluir