No meu caderninho de pensamentos desenho impaciente qualquer coisa. Já é meu quarto expresso e tenho de continuar pedindo pois conheço o lugar, a balconista é uma vaca. Queria poder acender um cigarro aqui, sinto minhas mãos geladas, talvez seja o mármore da mesa ou o frio que faz lá fora, o que na realidade não importa, meu cigarro não vai ser acendido. Escuto uma risada vindo por de trás de mim. No que me viro reconheço a dona da risada, velha conhecida, e ela ri ainda mais devido a minha cara de surpresa e minha costumeira falta de jeito. Convido-a para sentar e ela delicadamente senta-se a meu lado. Aquela trágica conversa de amigos que não se veem faz algum tempo começa. Bem de saúde? E a família? Separou-se? Uma pena. Tento jogar algumas lembranças de nossa adolescência: os psicotrópicos, os casais, os shows, os sonhos... mas em nosso passado não ouso tocar, seria rude e eu não saberia como agir. Se casei? Não. Crianças? Só meus alunos. Continua fumando pelo jeito? Certos hábitos permanecem, querida. Vejo que café é ainda o seu preferido. Você é uma ótima observadora.
Falamos um pouco de política, flertamos um pouco os avanços da ciências e damos uma rápida passada pela história. Ela desata a falar de um livro que estava lendo, um do naipe de Machado de Assis se entendi bem, não consegui acompanhar, pra falar a verdade não conseguia parar de prestar atenção nos beijos que os cílios dela davam com o vapor fumegante de seu capuccino que recém chegara. "Querida, você pelo jeito continua com o hábito de ser linda", penso. Quando dou por mim lá estava ela repetindo meu nome, com um semblante um tanto quanto preocupado. Peço perdão pela ausência momentânea e tento por a culpa no excesso de stress. Pergunte de novo. Um livro? Já escrevo o título pra você.
O assunto acabou agora, cada um se concentra em seu respectivo café quente. Puxo do bolso de minha jaqueta uma caneta e no guardanapo escrevo. Cuidadosamente o dobro junto de uma nota de cinco reais e deixo ao lado sua xícara. Uma cara de espanto toma conta da calma que normalmente habita aquele rosto. Beijo sua testa e chamo a vaca da balconista. Desço as escadas suando feito um moleque que mostra a nota ruim ao pai. Finalmente, na rua posso acender meu Lucky. Me ponho a imaginar ela lendo minha cursiva mal feita e notando que aquilo é tudo menos o título de um livro. Espero sinceramente que lembre das músicas que tocavam no nosso tempo e que não me ache um babaca por ter escrito aquelas bobagens sentimentais. Da janela do andar de cima ela sorri para mim.
Só nós dois sabemos que esse sorriso é o máximo que posso roubar de você, sempre foi assim.
E terminamos com acenos falsos nosso dia, tão falsos quanto as mentiras que são nossas vidas.
A próposito, nao me julgue por ter apenas dado cinco reais, um babaca que se prese nunca pode terminar um encontro como cavalheiro.
bukowski/veríssimo total, haha. me pergunto o quanto é autobiografico nisso aí.
ResponderExcluirgostei. principalmente dos diálogos "infiltrados" no texto.
ResponderExcluirMais bukowski, eu diria. Lindo, lindo, lindo. A gente percebe que uma história literária é boa, quando conseguimos nos imaginar nela, ou em alguma situação parecida. Eu, pelo menos, imaginei-me ali, só que no lugar do homem, em totalidade.
ResponderExcluirps: o detalhe da balconista vaca, agradou-me demais.