ape

o desarranjo poético

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

desilusão

          
Sabe quando você é pequeno e vai à praia e não consegue resistir a sedutora ideia de construir um castelo na beira d'água?  E que aquilo pra você é mais que um simplório castelinho de areia?  Você pensa, arquiteta, quebra a cabeça, pega gravetos, ergue cada viga, cada tijolinhos e chama os engenheiros pra dar o ok final, afinal não era uma boba brincadeira de criança.
          


Se lembra como era bom olhar para aquele vistoso castelo e imaginar o mundo de pessoas que viveriam alí, que amariam seu reino (e seu Deus)?
          



E você se lembra do que sentia quando o via o mar promíscuo lamber cada pedra e grão de areia?  E que sua língua grande e morna ia aos poucos, como faz um homem sedento, avançando na pele branca da praia? E que ia roubando teu castelo de ti?  E você o via morrer, mas não podia fazer nada.


Sabe o que é engraçado?  Você já sabia dessa merda desde o começo.

e você ainda ama fazer castelos.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Tommy.

        Quando eu era pequeno, depois das onze horas, quando todos já tinham as cabeças firmes no travesseiro..  eu acordava.  Meus dedos miúdos erguiam devagar o cobertor felpudo e quente e meus dois pés de criança pisavam o chão de madeira, descalços, como não deveria ser.  Leve era como eu ia até a janela.  Abria uma fresta de pouco mais que um palmo e ouvia os sons do marasmo da noite na Travessa dos Flamboyants.  Minha cabeça de criança não tinha sono, só ansiedade.  Impaciente eu chamava-o baixinho e em poucos minutos estava lá meu amigo.   De fato não havia nenhuma grande demonstração de afeto, simplesmente ele vinha, magrinho, dormir comigo.  Meus pés de criança caminhavam devagar em direção a cama e minhas mãos de dedos miúdos seguravam Tommy, que na escuridão de meu quarto e minha noite, sumia.  
             Todo dia, nosso ritual secreto.  Todo dia eu te esperava.  Mas eu cresci Tommy... e sabe como é, não podemos ser assim quando grandes, podem nos julgar.. e é assim que a gente seca.

                E agora, magrinho, quem me espera é você. 



Não vai esquecer de deixar a janela aberta.

dia em vermelho e azul.

Pela manhã acordei                      sem vontade de acordar
Tomei meu café azul                    sem vontade de tomar
Pelos cantos andei                        sem vontade de chegar
Pelas pessoas passei                     sem vontade de cumprimentar
Por água passei                            sem vontade de parar
Escutei música                             sem vontade de escutar
Cantei pobre melodias                 sem vontade de cantar
Sentei só                                      sem vontade de descansar
Abracei amigos                           sem vontade de gostar
Abracei amigas                           sem vontade de ser par
Dancei músicas                           sem vontade de aprender
Chorei ao telefone                       sem vontade de chorar
Banquei o tal                               sem vontade de machucar
Voltei ao quarto                           sem vontade de andar
dormi                                         sem vontade de acordar

 

domingo, 15 de agosto de 2010

Meu bem, vai um Rolex?

Fez-se
Amável e
Linda.
Tentadora e
Atriz

Depois
Esqueceu

Tudo
Em seu
Medo
Patético
Ou


seria apenas falta de algo que desconheço

ou de algo que não fiz.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Demoiselle.

     Final de uma noite fria. A água quente corria sobre o couro cansado.  Apesar da cara de gozo e alívio, as costas ardiam e, vermelhas, choravam.  O homem que alí estava contemplava com um olhar insone e pouco concentrado os móveis, os azulejos e um reflexo seu que tomava um quê inusitado devido às inúmeras rachaduras do espelho.  Subitamente a imagem se foi, tomando conta uma figura disforme.  Havia embaçado.
     Depois de terminar seu banho, secando seu cabelo notou que seu reflexo ainda não voltara.  Sem pretensão alguma caminhou até bem próximo do espelho, afinal tinha que pentear seu cabelo.  No que chegou lá, por impulso, levou seu dedo até a superfície gélida e sua pele quente desenhou um sujeitinho, só ele.  Observou o rapaz flutuante e achou fantástica sua ausência de "pés no chão".  Riu consigo mesmo e empolgado continuou sua obra.  Um pássaro foi o que ele fez, cortando o céu de seu reflexo deformado.  Agora os dois compartilhavam do mesmo céu, das mesmas nuvens, da mesma liberdade...  E ele, sozinho, sonhava.  Foi então que no último espaço que sobrara rabiscou homem e pássaro, juntos.  Dom quixote e seu alazão, conquistando a imensidão do espelho do banheiro.  Riu consigo mesmo mais uma vez, e desta vez puxou o ar para os pulmões e baforou o hálito morno contra sua criação, que desapareceu tão veloz quanto havia sido criada.  Julgou-se louco e ainda pôs a culpa nas horas mal dormidas para tais alucinações.  Quando na cama prometeu reduzir o café e comprar um travesseiro de penas.
     Ele não reduziu o café.  Ele não comprou um travesseiro de penas.  Tampouco passou a dormir cedo.  E eu...  Bom, eu observo pássaros voando em uma praça com seu nome

aliás, não só pássaros

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

carnaval, cristais de lítio e pensamentos do sono de meia cama.

No alto de uma colina, não muito longe de mim, não muito longe do meu sonho, vive uma menina.

Seus sapatos pretos são sempre bem engraxados e a meias brancas sobem charmosas suas curtas pernas.  
O vestido é vermelho, combinando com seu volumoso chapéu. 

Contudo de onde estou é impossível ver seu rosto, pois há como que uma nuvem delgada (que por sinal me remete a uma daquelas belas máscaras dos bailes venezianos) cobrindo sua face escondida..  e mesmo sem expressão, sem cara, sem boca, ela sorri para mim.  só para mim.   É então que subitamente me sinto feliz, e tudo fica tomado por um colorido feérico, brilhante.  

E as cores dançam para mim.   Só para mim.

E os passáros que não existem cantam pra mim.  Só pra mim.

e então eu tento correr na direção dela, e meus pés não saiem do chão.  De repente começo a cair, e cair , e cair.
e, assustada, ela começa a correr.
e, aflito, eu tento ir.

subo a colina e a verdade cai sobre mim.
do meu carnaval só restou o fim.  





uma máscara de baile junto a grama
e um beijo jamais roubado.

retrato da modernidade

e eu que descobri, em uma daquelas conversas meio sem rumo, que a música que embalava meu sono quando pequeno era a de um comercial de colchões.